15 junho 2010

Uma análise de "Contracultura", o novo trabalho dos Gazua

A poucos dias do lançamento de Contracultura, o terceiro álbum de originais dos Gazua, agendado para a próxima sexta-feira, 18 de Junho, às 23h no Cinema São Jorge em Lisboa, o A Crack in the Cloud avança aqui uma análise pessoal deste trabalho.

Impõe-se desde logo um 'aviso à navegação': o texto que se segue não é uma review musical no sentido comum, mas sim uma análise crítica deste trabalho, fundamentalmente na sua vertente cultural e não estritamente musical.

O A Crack in the Cloud desde já recomenda a leitura da excelente review ao álbum da autoria de Billy, disponível no blog Billy-News. Para ler esta review clicar aqui.


O último trabalho dos Gazua, Contracultura, é como que um espelho de nós próprios, um misto de contrastes e dicotomias: é simultaneamente uma brisa fresca e um furacão, embala-nos e sacode-nos, arrebata-nos e ao mesmo tempo confronta-nos com o nosso eu mais interior, com os nossos fantasmas, com o nosso comodismo, individualismo, alienação, passividade e responsabilidade pelo actual estado de coisas…Ao mesmo tempo, contudo, mostra-nos que não estamos sós no nosso descontentamento e impotência, e que o caminho da mudança passa por alterações profundas, tanto a nível individual como colectivo: por uma verdadeira “cultura alternativa”! 

Contracultura é um trabalho mais rico e complexo do que os anteriores Convocação (2008) e Música Pirata (2009), tanto em termos musicais como de mensagem. Contém por isso faixas de um rock fácil, rápido e catchy, que se ouvem num fôlego só, a par de outras mais trabalhadas e experimentais, que exigem uma audição mais aprofundada e uma maior flexibilidade - do ouvido e da mente.

O álbum mostra-nos igualmente um colectivo mais maduro e muito bem sintonizado, com uma identidade própria que, apesar de já bem visível nos trabalhos anteriores, se revela aqui de forma muito mais vincada e segura, não só ao nível da produção colectiva como da criatividade e das especificidades individuais. Este trabalho destaca-se ainda pela qualidade (literária) das letras, assim como pelo design elaborado e conceptual, ambos da autoria de João Morais (ver entrevista em posts anteriores).

“A mudança que queres ver” é simplesmente arrebatadora, e confronta-nos, sem dó nem piedade, com a superficialidade que cultivamos dentro de nós e nas nossas relações com os outros, assim como com a apatia e indiferença com que nos escudamos das dificuldades, complexidade e problemas do mundo em que vivemos. Contudo, dado que cada um de nós é parte integrante desse mesmo mundo, a responsabilidade da mudança tem de ser assumida activamente:

“(…) E corres! corres! / mas não podes fugir / tens de te tornar na mudança que queres ver”.

“Preocupa-te”, o segundo tema do álbum, com um ritmo igualmente rápido e contagiante, concretiza um pouco mais as facetas que a mudança individual deve assumir, apelando à necessidade de maior atenção, reflexão crítica e envolvimento com o mundo em que vivemos e com aqueles que o partilham connosco.

“Preocupa-te com o facto de não teres dinheiro / se trabalhas sem parar o ano inteiro / preocupa-te se alguém não sabe ler nem escrever / num mundo já de si traiçoeiro”.

Simplesmente vertiginoso, “Ele Já Não Respira” retoma, num registo poético, uma temática já abordada em trabalhos anteriores (por exemplo em “Por Outro Lado”, Música Pirata), nomeadamente a dos sem-abrigo: pessoas comuns cujos projectos de vida falharam e para quem a sociedade continua a não ter resposta, deixando-os à mercê da degradação, dos elementos e da caridade de alguns.

“Deste tudo o que tinhas para dar / A vida parou num beco sem saída / Submerso numa poça tentaste-te levantar / Ele já não respira!”

Em “Mais Significado” o ritmo abranda, mas não o olhar clínico social, que se dirige implacável ao consumismo desenfreado que aliena, aprisiona e eficazmente neutraliza a consciência crítica, a mobilização colectiva e o seu indubitável potencial de oposição e de mudança. A letra apela por isso à capacidade de recusarmos as falsas promessas do consumismo capitalista, e de procurarmos satisfações e recompensas mais sólidas noutras esferas, talvez das relações humanas, e de actividades não monetizadas:

“Há mais na vida e mais verdadeiro/ Que não se vê e não custa dinheiro”.

“Morreu o Coveiro” oferece-nos um momento fugaz de escapismo, transportando-nos para os ambientes lúgubres do romance gótico, e para a figura solitária, singular e marginal do coveiro, que vive o dia-a-dia numa espécie de limbo entre o mundo dos vivos e dos mortos, até ele próprio sucumbir… Esta música tem a particularidade de ter letra e voz do baixista Paulinho.

“Chamando Urano” é talvez o tema mais experimental do álbum, num registo mais lento e que convida à introspecção. É um lamento desencantado perante a violência, o ódio, a falsidade, a discórdia e a ganância inescrupulosa do mundo actual, e a decisão da fuga para um planeta distante, por mais inóspito que seja à vida humana…

“Perigo Eminente” traz-nos de volta à ‘Gazualand’ do rock límpido, melódico e acelerado, e à temática já familiar dos borderliners, pessoas - reais, que todos conhecemos ao longo das nossas vidas - cuja rebeldia e intensidade assumem por vezes contornos patológicos, precipitando a sua auto-destruição…

“Corpo Oco” traz ao de cima a preocupação dos Gazua com a história recente do país. Ao ouvi-lo, relembramos o regime ditatorial que marcou (e marca ainda…) indelevelmente os destinos e a identidade nacional. Aproveitando a margem interpretativa que o tema permite, escolhemos lê-lo como uma recusa e denúncia das tentativas persistentes de branquear o fascismo e de reabilitar esse homem tenebroso e facínora que foi Salazar:

“Uma pele suja num corpo oco / E ver-te cair soube-me a pouco”.

“Divagueando” é um interessante exercício instrumental, e constitui mais um ‘corte’ neste álbum marcado pela exploração de vários caminhos sonoros.

“Casa dos Fantasmas” recupera o registo mais melódico, escorreito e acelerado ‘tipicamente Gazua’.

“Nunca Estou Satisfeito” surpreende-nos pela sua improbabilidade: um tema rápido, fresco e leve que nos fala (com algum humor) da insatisfação permanente que caracteriza a natureza humana. Uma escolha estranha para terminar um álbum que se caracteriza essencialmente pela densidade reflexiva…

… E eis que surge então, de forma surpreendente e inesperada,  “a cereja no topo do bolo”: após o término da música, um silêncio longo e pesado dá lugar a uma faixa escondida, intitulada “A Minha Droga”. É uma música profundamente sombria e intimista, quase arrepiante, dominada pelo lamento de uma guitarra eléctrica a abafar uma voz off que, num registo poético e filosófico, sintetiza algumas das principais ideias que perpassam não só este Contracultura, como a obra feita dos Gazua: o descontentamento perante o mundo actual, e a premência de redescobrir e implementar, individual e colectivamente, uma cultura humanista cívica e democrática (com raízes históricas milenares) que nos conduza a formas mais justas e igualitárias de vivência comum.

“A minha droga são pessoas / fortes e decididas / que não baixaram a cabeça / não se deram por vencidas / esmurraram as mesas / marcaram posições / perderam gotas de sangue / à procura de soluções (…)”.

Em suma: Contracultura é indubitavelmente uma amostra concentrada do melhor que o rock pode oferecer no mundo do século XXI. Em termos de sonoridade, proporciona-nos uma experiência musical plena e enriquecedora, mas de alguma exigência interpretativa, requerendo concentração e flexibilidade q.b.

Em termos de conteúdo, Contracultura é um verdadeiro survival kit para enfrentarmos o quotidiano difícil numa sociedade hiper-capitalizada, desorientada, alienada, em que a falência de um sistema económico putrefacto desde a nascença precipita e agudiza muitas das suas consequências nefastas: a desigualdade e a injustiça, a miséria e a desumanização a todos os níveis (político, económico, social e cultural). É também um abanão violento que nos impele a uma mudança interior e de atitude perante os outros e perante o mundo, e que terá de constituir o primeiro e imprescindível passo para a mudança e melhoria dos destinos individuais e colectivos.

(Maria João Ramos, aka Sheena)

Para adquirir o Contracultura (ou os trabalhos anteriores da banda), basta visitar o site dos Gazua no myspace e seguir as indicações fornecidas.

Fica o convite original dos Gazua para a festa:


GAZUA | MySpace Music Videos

1 comentário:

  1. *************************

    Isto sim, é uma análise aprofundada e completa da essência dos Gazua que tão bem se sente neste disco.

    Todo o conceito e ideias estão bem espelhadas nesta review que sintetiza perfeitamente o "ContraCultura", terceiro disco lançado em três anos consecutivos.

    Parabéns pela excelente análise!

    E obrigado pela referência.


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